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Olho

Eu estava descendo as escadas do prédio. Saí do apartamento vazio do último andar, a caminho do térreo, e não consegui pegar o elevador. Apertei o botão, mas as portas não se abriram. Olhei para o corredor, mais portas fechadas. Olhei pela janela, vi as nuvens. Olhei pelo vão da escada, não vi o chão.


Descia sem pressa, degrau a degrau, reparando nas vidraças; reparando numa porta com um crucifixo, em outra com uma guirlanda, nos tijolos, nas cortinas, nas grades; caixas-d’água, homens sobre telhados, telas, redes, rachaduras, manchas, silhuetas, roupas nos varais, vasos sem plantas; lia palavras que não entendia, ouvia conversas que não devia. Olhava pelo vão da escada, ainda não enxergava o chão.


Eu estava descendo as escadas do prédio e, quando já tinha passado por alguns andares, ouvi uma risada; uma gargalhadinha gostosa, se enroscando nos meus cabelos e me convidando pra chegar mais perto. Interrompi minha descida e comecei a caçá-la; o andar era grande e as portas, inúmeras.


Vasculhei de um lado para o outro, tentando abrir as portas, que resistiam. Sondei de cima a baixo, examinando o teto e me arrastando pelo carpete. Até que avistei: no fim do corredor, se fechava um par de cortinas grossas, pesadas e escuras; escapando por suas ondas, vi um hihihi tão fininho que driblava o bloqueio e se deslizava para fora, escorregando entre os tecidos.


Cheguei perto, virei as costas das mãos uma contra a outra, enfiei meus dedos entre as duas cortinas (sentindo o aveludado roçando na minha pele) e cavei um pequeno buraco, suficiente para aproximar meu rosto e bisbilhiotar o que tinha lá dentro.


Um cheiro forte de fumaça embaçou meus olhos e um tuntz tuntz abafou a risada. Pisquei algumas vezes e, com certo esforço, uma imagem mais definida começou a se formar em minhas retinas. Vi uma pista de dança, grande, circular, de piso escuro, completamente cercada por cortinas pesadas; as luzes piscavam e pintavam o salão de cores fortes que se alternavam; no centro do espaço, um globo espelhado girava no teto e, abaixo dele, um pavão se apoiava sobre um poleiro alto.


O pavão bruxulava junto das luzes e do tuntz tuntz tuntz, mudando de cor: azul, laranja, preto, vermelho, verde, roxo, marrom, amarelo. A ave era grande e exibia seu rabão aberto, com penas que falseavam olhos. Entre os dedos de um dos pés, segurava um fumo enrolado; de quando em quando, levava a erva perfumada até o bico, tragava e soltava círculos e bolhas de fumaça densa.


Às voltas com o pé do poleiro, estava ela, a criaturinha que gargalhava e me atraíra até ali: uma pomba, caminhando pra lá e pra cá. Não parava quieta e não tirava os olhos do pavão; achava graça e se deleitava com tudo o que a grande ave fazia. Cada tragada e balançada dos vários olhos provocavam pequenas convulsões na pombinha, que soltava soluços esganiçados e bicava as cinzas que caíam na pista.


O pavão tragava, ela hihihihihihihihihihihihihihi balançando a cabeça pra frente e pra trás. O pavão se exibia, eu assistia (com minha cara pela cortina) e engolia a fumaça; a pomba hahahahahahahahaha sacudindo o pescoço e esticando a língua pra fora do bico aberto. O pavão estufava o peito, o tuntz tuntz tuntz tuntz batia; ela bicava as cinzas, engolia as sobras e hihihihihihihihi. O pavão mudava de cor e baforava fumaça, ela ri-ri-ria, eu ria dela, ele tragava, eu ri-ria dele, a fumaça delirava, ela bicava, eu ri-ri-ria de mim, ela ri-ri-ria, o pavão mudava de cor, o rabão balançava, ela riiiia, a fumaça adensava, eu ri-ri-riiiia, ela bicava, o tuntz tuntz tuntz tuntz tuntz se agravava, eu riiiiiiiaaaaaaté doer; me afastei das cortinas e segui viagem.


Eu estava descendo as escadas do prédio, reparando nas janelas e nas portas, quando ouvi uma barulhadaaaaaauuuuiuiui a-a-a-a-a-a-a-a-a i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.i. //////////// uauauauaaaaa uaaaaargh uwuóghl uwuóghl )))))))))))) i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.i ë'ë'ë'ë'ë'ë' kha;kha;kha;kha; h¬h¬h¬ gggggggggg uiuiuiui //////////// nháááá´´´´´´´ °°°°°°°.


Os sons vinham de longe e chegavam galopando nos meus tímpanos. Continuei descendo, procurando os //////////////. Desci mais alguns andares e os )))))))))) fediam. Mais andares abaixo, os h¬h¬h¬ se agigantaram. Mais um pouquinho e pude ouvir os uiui a-a-a-a-a-a-a-a-a i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.i. se esgueirando pela fresta de uma porta quase fechada.


Com as pupilas dilatadas, me aproximei lentamente da brecha. A cada passo arrastado, os ë'ë'ë'ë'ë'ë' me socavam e o fedor me pressionava. Encostei minha mão direita na porta branca, que reagia emperrada. Apoiei a lateral do meu ombro contra a madeira fria e forcei com todo o meu corpo. Nada. Olhei através da fresta.


A abertura por onde eu olhava estava no canto direito de uma edícula escura — que crescia para o outro lado, a perder de vista; era só uma parte de uma parte da edícula. A pouca luminosidade vinha somente da fresta (onde eu estava) e de fendas estreitas (de janelas fechadas) na parede que se prolongava à esquerda da porta; relances de uma parte de uma parte da edícula. Os feixes amarelos serpenteavam, revelando cenas curtas na penumbra: paredes manchadas, caixas de papelão, jornais velhos e gaiolas; muitas e muitas gaiolas cheias de passarinhos.


Eram eles, com seus bicos curtos e cônicos, que barulhavam. A luz passava e eu via que alguns cantavam até perderem o fôleguuuuiuiuiui ///////////. Mais um lampejo e eu vi outros que pi.i.i.i.i.i.i.i.avam lamentos entres gritos e kha;kha;kha;kha;. Uma faísca e vomitavam na gggggggggggoela dos filhotes. Uma centelha e copulavam uwuóghl uwuóghl batendo as asas. A luz zuuum e alguns dormiam e falááááá´´´´´´°°°°°°°°°vam enquanto sonhavannnnhhhhh. Zás e outros estalavam pequenas sementinhas e engoliam os ë'ë'ë'ë'ë'ë'mbriões. E todos cagavam. Comiam, cantavam, copulavam e, aos jorros, cagavam.


As barras das gaiolas pingavam cocô de passarinho e o ar engrossava com seu fedor. A passarinha ch¬h¬h¬orava aos berros, a inhaca fedia mais alto. O filhote engoowwwwwuulia e urrava por mais, a merda fedia mais alto. Alguém bradav========a, a titica fedia mais alto. A estrondeira se apequenava perto do futum; minhas mucosas pinicavam. Fungando e lacrimejando, segui viagem.


Eu estava descendo as escadas do prédio, tentando ver o chão do térreo, sem conseguir. Parei. Apertei o botão do elevador. D'ín. A porta abriu, nada. Fosso. Uén. Fechou. Apertei de novo o botão. D'ín. Fosso. Uén uén. Fechou. Apertei. D'ín. Fosso. Uén uén uén. Fechou. Apertei mais uma vez. D’ín. A porta abriu, luzes vermelhas, uén uén uén uén uén.


Dentro do elevador escarlate, uma cacatua andava como um soldadinho de chumbo: seus pezinhos subiam e desciam em noventa graus, sustentando uma marcha ritmada, sem sair pela porta aberta. No bico, a cacatua segurava uma mamadeira vazia de cabeça rosinha, que ela jogava de lá pra cá e de cá pra lá.


Arremessava a mamadeira, uén uén uén, eriçava a crista, marchava, quero mamar, quero mamaaaaar, pegava a mamadeira, balançava, jogava, uén uén uén, quero mamaaaaaaar, eriçava a crista, pegava e jogava de novo. Exigia, alarmava e uén-uén-zava; mudava de direção, fazia birra e buá-buá-zava.


Parou por um instante, segurou a mamadeira pra cima da cabeça, arregalou os olhos, eriçou a crista lentamente, piscou as luzes, abriu as asas, levantou um dos pezinhos e chicoteou o pescoço crac crac crac; atirou a mamadeira com força pra um canto e qqqqqquuuuuueeeeeeerrrrrrrooooooo mmmmaaaaaaammmmmmaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaar, buá buá buáááááá. As portas se fecharam. Segui viagem.


Eu estava descendo as escadas do prédio sem reparar em nada. Descia cada vez mais rápido, mas o térreo continuava longe, muito longe. Comecei a pular os degraus, de dois em dois, não chegava. De três em três, não chegava. De quatro em quatro, não chegava. Olhava pelo vão, não via o chão. Corri mais, pulando lances inteiros de escada, com saltos que gelavam minha barriga. Saltava e saltava. Não via o chão. Corria, tropeçava, bufava, suava. Parei, ofegante.


Cheguei a um andar pequeno, com só uma porta: rosinha, lisinha; sua maçaneta era sinuosa e rebuscada; a fechadura exibia um adorno ovalado, com um buraco apertado em seu centro. Junto à porta, aguardava um capacho branco, peludo e imaculado; tão limpo que o afastei com um arrastar cuidadoso do pé: abri espaço e pisei bem perto da entrada fechada, apoiei mãos e antebraços na face morna, inclinei suavemente o tronco, fechei as pálpebras esquerdas e aproximei meu olho direito do olho mágico da porta.


Vi uma sala grande, mas espremida: uma mesa longa, cheia de montanhas (cadernos, pratos e copos usados, papéis rasgados, canetas, fios, cinzeiros, roupas…); uma estante abarrotada (livros, caixas, garrafas, chaves…); um espelho grande em uma parede; uma televisão enorme ligada; uma janelona aberta ao fundo; uma bacia preta no piso de tacos (segurando os pingos de uma goteria que se abria no teto coberto por manchas e animais rastejantes); e uma bailarina: coque impecável, collant da mesma cor da porta, unhas brilhantes, meias-calças pretas, dentes sorridentes e sapatilhas brancas.


Bailava e balezava. Puxava o fôlego, nomeava os passos (com muitos iê, õn, üy), abria o peito, esticava os braços, levantava as pernas; se movia com mmmhhhhaaaa, ficava na ponta da ponta dos pés, flexionava os joelhos. Parecia um cisne. Dançava com o plínc plínc plínc das gotas, o blá blê brejavo num catim tubem da tv e o ar que escorregava por sua boca; fazia um biquinho com os lábios e, quando o ar escapava, se concentrando para dar uma pirueta, i.i.i.i.i.i.i.


Um espetáculo que crescia conforme o sol se punha. A janela enquadrava a luz dourada e a projetava direto no olho por onde eu abelhudava; piscava, lacrimejava e desviava das manchas. O sol batia forte, plínc plínc, os raios contornavam a bailarina, blá blê poti vajando, as sombras se alongavam, uuuuiuiuiui, a porta esquentava; eu chegava mais perto, tudo embaçava, o espelho refletia, as manchas esbugalhavam.


Um peixe saltou de dentro da bacia e xuáaah; zuuum um gavião entrou pela janela driblando as manchas no meu olho; a bailarina parou de dançar, mas Ana Botafogo bailava na tv. O gavião trouxe comida, que se acumulou nas montanhas da mesa, e foi embora por onde veio. Piscava e lacrimejava. Buáaaauiuiauiuaaa.


Um peixe saltou de dentro da bacia e eu mergulhei na água; a bailararina sombreava em volta de mim, a tv se emocionava com Ana Botafogo; Ana olhou no espelho, um gavião zuuuum atrás dela, jogando restos de comida sobre a mesa e indo embora pela janela; o dourado brilhava e cegava; as manchas no teto cresciam, xicxicxicxic rastejavam; a bailarina comia migalhas gordurentas (catadas no fundo de sacos oleosos) e limpava as mãos nos cabelos; xicxicxicxicxicxicxic, o coque se desfazia; se olhou desgrenhada no espelho, me vi cheia de sombras; xicxicxicxicxic uma lagartixa caiu das manchas, eu a esmaguei com a minha mão, seu rabo ficou balezando para trás, nhim nhim nhyê nhi xicxic, eu a esmaguei com a mão, o rabo chicoteava, nhanhanhanha crac, o rabo vibrava, eu a esmaguei com as mãos; Botafogo comia os restos de um bolo de chocolate num prato de plástico, crrrré crrrré com suas unhas, crrrré crrrré nas ranhuras do pratinho, crrrré crrré e lhaaamb na cobertura, e crrrré crrrré lhamb crrrré crrrré crrrré lhamb crrrrré crrrrrrré crrrrrrrrré até as unhas caírem; uma rata de laço vermelho deslizou pra fora de um buraco arqueado no rodapé e hihihihihihihihihihi; a bailarina se concentrava e i.i.i.i.i.i.i.i.i.i.; plínc plínc, mergulho na água; õn uy, danço com o rabo da lagartixa; hihihihihihi a rata botava fogo no assoalho perto da porta e atazanavaaaa hahahahahahaha; Ana crrrrónc crrrrrónc com piruás, crrrrónc crrrrrrrrónc nos piruás queimados, crrrrrrrrrónc nos milhos duros, crrrrrrrrrrrrrónc até seus dentes caírem; se olhou no espelho, não viu nada; eu saltei de dentro da bacia, bailei com a bailarina nhanhanha; ela saltava como um cisne; hihihihihihihi o fogo crescia; ela pegou uma caixinha da estante abarrotada e tirou um sapo de dentro dela; eu olho para o sapo, o sapo olha pra mim, ela vomita na boca do sapo; jorrava e escorria e vomitavah¬h¬h¬h¬; ela beija o sapo, a tv se emociona, ela brilha; ela se olha no espelho, coque no lugar, collant rosinha, sorriso brilhando como as unhas, ela vomita na ggggggggggoela do meu reflexo; eu engulo o mingau, ácido e empelotado; o fogo alastrava, a ratazana de laço vermelho hihihihihihihuihuihuihuihui; a bailarina criava asas, eu dançava com ela; as montanhas pesam, a mesa desaba; hihihihihihihihi ratazanava, a fumaça empesteava, a luz avermelhava; o rabo salta, uén uén uén, o fogo cresce, o rabo quica, ela se prepara, eu assisto da tv, abre as asas, lacrimejo, olha para a janela, a sombra se alonga, se distancia, se concentra, i.i.i.i.i.i.i., abre as asas, pega impulso, o fogo queima, a fumaça engasga, hihihihihihihi, e záaaaaaaaaaaaaaaaaaas até a janela.


Para na beira. Olha. Volta. Olha. Respira. Abaixa as asas. Engasga. Pega a bacia. Salto. A tv cala. Joga a água. O espelho não reflete. Apaga o fogo. Salto.

 
 
 

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