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Últimas palavras

A sentença estava dada. Após ouvir vítimas e testemunhas, a juíza bateu seu martelo com força ao concluir que a acusada era culpada dos piores crimes, tendo cometido até o inimaginável. Não havia dúvidas de que era uma malfeitora de imundice maior e, portanto, merecia a mais alta punição, a fim de limpá-la de todas as suas impurezas. O tribunal se encheu de aplausos, homens e mulheres, ricos e pobres, todos os presentes comemoravam a tão rara justiça. 


— Vai queimar, sua vaca!


A bruxa sustentou um sorriso manso, o mesmo a acompanhou durante todo o julgamento. Os lábios fechados, levemente arqueados, não tremeram nem uma vez; nem mesmo quando o banqueiro se dirigiu à massa inflamada e expôs as atrocidades vividas. Estava acompanhado de seu irmão mais novo, que tinha o rosto vermelho de tanto sangue e os olhos cheios de lágrimas. Sem conseguir falar, o jovem chorou do início ao fim, enquanto a história era relembrada.


Era tarde da noite de lua nova. O banqueiro, sua mulher e seu irmão caminhavam pela rua silenciosa. Conversavam em voz baixa, falavam sobre nada, frisou, até que começaram a sentir um perfume almiscarado no fundo da garganta. O cheiro forte ardia em suas mucosas e os três tiveram que parar para tossir e secar o nariz. Quando começaram a se recuperar, avistaram dois olhos vermelhos se aproximando. “Era a bruxa em forma de pantera”, disse o banqueiro. Paralisaram, a criatura causava curiosidade e também medo, confundindo os sentidos e imobilizando as pernas. Os olhos vermelhos da pantera-feiticeira espiralavam hipnotizantes e seus rugidos vinham acompanhados de um feitiço: “quero viver esse caos entrelaçante com você e com você”.


Deu o bote e puxou a mulher e o irmão do banqueiro. Rolaram pelo chão. Mordidas, arranhões, lambidas. O banqueiro, que assistira a tudo atento, rememorava os detalhes da fatídica noite. A juíza questionou por que ele não havia feito nada para interromper o ataque, ao que ele respondeu que não tinha o que ser feito. “Você encararia uma pantera?”, perguntou. Gritos, gemidos, fluidos. A pantera fez os dois de gato e sapato, se divertindo com a delicadeza dos corpos totalmente entregues. Ao fim do banquete, o ilustre homem perdeu sua mulher.


— Taca fogo nesse viado!


A juíza perguntou à bruxa se ela negava, mas seus lábios não se abriram, o que parecia enfurecer ainda mais os presentes. Veio, então, o pianista contar sua história. Parecia relutante, mas sua mulher o incentivava perfurando-o com o olhar. O pianista contou que fora prestar uma visita ao seu pai em um domingo, a pedido da esposa, com o intuito de tratar sobre questões burocráticas. Estava nervoso, não costumava encontrar com o pai desde que sua mãe falecera; por isso, se deteve antes de bater à porta. Ficou sentindo o coração pulsar forte e, quando se deu conta, já tinha se esquecido dos modos e entrara na casa sem cerimônias.


Chamou por seu pai, mas não teve resposta. Ouviu barulhos vindos do andar de cima e se dirigiu ao escritório do viúvo. Sobre a escrivaninha, não pôde acreditar no que presenciava: um enorme louva-deus orquídea, de antenas vermelhas, devorando a cabeça de seu pai. Já tinha comido olhos e cérebro, deixando um restante ensanguentado grudado no pescoço. O gigante não se acanhou com a visita inesperada e terminou seu trabalho lambendo os beiços. Satisfeito, diminuiu de tamanho e saiu voando pela janela. A decapitação, contudo, não levou à morte do pai do pianista. No lugar de sua cabeça, nasceram orquídeas cheias de ironia. “Dizem que agora ele vai dia sim, dia não visitar o pai”, alguém murmurou no tribunal.


— É bom ir se acostumando, sua vaca, porque você ainda vai arder muito no inferno.


A bruxa seguiu inabalável, mesmo quando a acusaram de acabar com a linda amizade de duas amigas, se transformando em uma pomba de bico vermelho. A dupla, uma gorda e outra magra, viviam juntas para todo lado, até que a pomba passou a aparecer sempre que se encontravam e cagava na cabeça da magra. Não importa onde estivessem juntas, a pomba dava um jeito de cagar na cabeça da magra, até ambas decidirem que não deveriam mais se ver. A bruxa também não disse nada quando os funcionários públicos relataram que ela, em forma de crocodilo de dentes vermelhos, invadiu a prefeitura e destruiu todos os vasos sanitários com golpes do seu rabo.


— Seu porco nojento, vai virar churrasco.


Durante todo o julgamento, a bruxa só falou duas vezes. Quando os pescadores contaram que uma orca de barbatana vermelha destruiu suas embarcações, a feiticeira riu baixinho e falou:


— Foi só uma brincadeira.


Mas não disse nada quando uma mãe contou que sonhara com ela. Em seu sonho, a bruxa se transformava em uma pequena aranha de patas vermelhas. A aranha entrava no quarto de seus dois filhos adolescentes, ia até o ouvido de um e perguntava: “o que você sentiu na primeira vez que viu seu pai pelado?”. Depois, entrou na orelha do outro e sussurrou: “se sua língua não ficasse na boca, onde ela poderia ficar?”. A mãe acordou assustada do pesadelo e foi imediatamente ao quarto dos jovens irmãos, precisava checar se estavam bem. Abriu a porta e um quadro foi imediatamente pintado em suas retinas, com uma cena tão aterrorizante que ela mal conseguia compartilhar para a sala cheia:


— O que essa cachorra obrigou meus filhos… Isso não se faz. Isso não se faz! A boca de ninguém deve fazer aquilo. Com um irmão, então? Se essa cachorra continuar viva, o que vai ser de nós?


A acusada manteve seu silêncio mesmo com as muitas queixas do sumiço das freiras. Uma testemunha disse que avistara todas juntas em uma clareira a uns bons quilômetros da cidade. Estavam com cabelos longos e cheias de pelos; vestiam poucas roupas e riam. Gargalhavam. Enquanto isso, o convento seguia vazio, com exceção dos cogumelos vermelhos que se alastraram por todo canto do imóvel. Só podia ser coisa da bruxa, assim como a formiga que enlouqueceu as crianças que brincavam juntas na areia. Os adultos se distraíram por um breve momento e, quando perceberam, as crianças…


— Não fui eu — disse a bruxa antes mesmo da história acabar.


— Então quem era aquela formiga vermelha que eu vi sambando por ali? Não acreditem na bruxa, ela é mentirosa.


— Sou mesmo.


Todas as acusações foram feitas e acatadas pelas marteladas da juíza. Agora, era hora de cumprir a sentença. A bruxa, com seu sorriso desafiador, foi levada até a praça da cidade, amarrada na estaca e banhada por cusparadas enquanto preparavam o ritual. A plateia gritava e pedia que apressassem a execução. Os carrascos obedeceram e tacaram fogo na bruxa. Gritos de prazer e deleite preencheram o momento, acompanhados da voz serpenteante da feiticeira, que recitou em alto e bom som enquanto as chamas lambiam seu corpo.


eu desejo você

desejo desejo a você

desejo um fervilhar em você

desejo entrar em você


comam meu corpo

bebam meu sangue


se deliciem, se satisfaçam, se saciem

e nunca mais tenham fome de migalhas


acendam o fogo

apaguem as luzes

abram a boca

fechem os olhos


vamos compartilhar os gostos que ficam na língua

e as lembranças que se perdem entre os dentes


abram as bocas

é urgente


é ser ciclone quando se deve ter paciência

ser cachora e também pantera

ser criança


é ser a bomba quando se deve ter calma

é não ter coerência, não ter decência

não ter nada


acendam os fogos

desejo um incêndio


não tem caminho

é torrente

não tem ouro

não tem ninguém

e tudo pulsa e tudo vibra e tudo sacode com o ronco do vulcão


desejo demolir as estátuas romanas

e os navios portugueses

desejo rolar sobre as ruínas com todos vocês

gemendo em todas as línguas

menos em inglês


se deliciem, se satisfaçam, se percam nas rimas

se percam no ritmo

se percam, se achem

se desejem


desejo meu corpo e o de cada um de vocês

desejo minha voz


desejo que a gente viva

desejo que a gente seja

desejo que a gente não se conforme, que a gente não agrade, que a gente não aceite


desejo desejo

desejo demolir e não erguer nada


desejo um incêndio a todos vocês

 
 
 

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